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Parecendo a África

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Arquivo Pessoal

Sou a filha mais velha do José, negro, que trabalha como porteiro, e da Ivanilde, branca, auxiliar de cozinha. Meu irmão, Hygor, foi o primeiro da história da minha família a se formar na universidade. No final deste ano, será a minha vez.

Entrei na UnB por meio do sistema de cotas. A partir daquele momento eu nunca mais fui a mesma. No primeiro semestre comecei a estagiar no Centro de Convivência Negra. Ali passei a assumir a minha negritude, reforçada pelas aulas de Pensamento Negro Contemporâneo, com o professor Edson Cardoso.

Até então, eu não reconhecia a minha beleza: alisava o cabelo, tinha bonecas brancas, minhas referências eram mulheres brancas. Eu nunca tinha refletido sobre como o racismo tocou minha identidade e autoestima ao tentar esconder as minhas características. Meus pais, para me “proteger”de situações de racismo, incentivavam esse visual próximo ao das mulheres brancas, como se isso fosse evitar o meu sofrimento.

consciência racial mudou minha forma de ver o mundo. Hoje entendo que há questões históricas violentas que excluem a população negra. Compreendo que situações pelas quais passei estão relacionadas com a história do Brasil e da África, com a população negra no Brasil. Percebi que milhares de pessoas são vistas como inferiores por sua cor de pele. Compreendi que o povo negro sempre lutou por libertação e reconhecimento e que tem de estar representado em todos os espaços da sociedade.

O lugar do negro é em todo lugar, mas a sociedade ainda não entende assim. O sistema de cotas está aí para reparar esse erro”

Na UnB, há liberdade para se expressar. Mesmo assim, não é fácil ser negra nesse contexto. Já ouvi professores se queixarem que “a UnB está parecendo a África”, ou que “está mal frequentada”, ou que “a qualidade do ensino vai cair por causa dos cotistas”. É difícil para um jovem negro querer ingressar em uma universidade pública quando tudo e todos ao seu redor dão a entender que aquele não é o seu lugar.

Assim se dá o racismo no Brasil: de forma sorrateira, à surdina, calando os negros. É um racismo cruel, que mata, prende por engano, exclui.

lugar do negro é em todo lugar, mas a sociedade ainda não entende assim. O sistema de cotas está aí para reparar esse erro.

Quero poder dizer aos meus filhos que eles são livres para estar onde quiserem, que poderão ser ricos como o fulano da novela, que poderão ser médicos como o tio sicrano, que poderão ser presidentes como o Obama. É nosso papel definir o que será daqui para a frente. Eu quero uma sociedade mais justa.

UnB foi a primeira universidade federal a adotar o sistema de cotas, há dez anos. Uma pesquisa realizada pela universidade e publicada em 2013 mostra que o desempenho dos alunos que ingressaram por meio do sistema de cotas se equipara ao rendimento verificado em alunos não cotistas. O sistema será revisto nos próximos meses.

Kendy Neris, 28 anos, aluna cotista do último ano de ciências sociais na Universidade de Brasília


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